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Salmo 104: o esplendor do Espírito na criação

Atualizado: 21 de set. de 2021

Somos parte integrante da natureza e sem ela perecemos.


por Padre Junior Vasconcelos, via Dom Total

Deus nos criou e somos fruto de seu desejo (Unsplash/Luc Vlekken)

O Salmo 104 (103, conforme a tradução) descreve a belíssima cosmologia de Israel, ou seja, o modo como o narrador bíblico pensa e conta o mundo (a ordem das coisas criadas). Tal como no Sl 1, o salmo 104 desenvolve a ordem das criaturas de Deus: luz, céus, águas, vento, fogo, terra, abismos, montanhas, montes, vales, animais, ser humano... Tudo está em ordem, desta palavra deriva o termo grego cosmo, daí cosmologia, "um discurso sobre a ordem de todas as coisas".

Bendize ao Senhor, ó minha alma! São as palavras que nos introduzem ao Sl 104 e dele nos despedimos, tal como uma porta de entrada e uma de saída. Trata-se de um salmo inserido no 4º bloco do Saltério (como é conhecido os 150 salmos ?" em hebraico TeHiLiM), o conjunto conhecido com "ação de graças à realeza de Deus", que vai do Sl 90 ao Sl 106, um bloco narrativo nos salmos que revelam a primazia de Deus e seu domínio (reinado) sobre toda realidade por ele criada.


Neste bloco de salmos, o narrador enaltece a grandeza e a majestade divina. Ele afirma: "vestido de esplendor e majestade", equivalendo comparativamente ao Espírito de Deus, como espírito que abrange toda corporeidade, o Espírito de Deus que envolve toda Terra, todas as realidades que emanam dele e que do nada (ex nihilo) ele criou, a fim de se relacionar com suas criaturas. Deus cria sem necessidade de criar, cria porque desejou criar, a fim de se relacionar com suas criaturas.


Deus nos criou e somos fruto de seu desejo. Ele não tinha a necessidade de nos criar, mas assim o quis e o fez. Por isso, a certa altura das Escrituras, precisamente em Gn 6, 5-6, Deus se arrepende de ter criado sua última criatura, o ser humano, por ver a maldade e perversão de seu coração. A atitude divina de se arrepender, plasticamente descrita desemboca nesta seção de Gn consequentemente no dilúvio, condição de possibilidade para a recriação, para a nova aliança estabelecida com Noé. Deus mesmo diz, no v. 7, pelas mãos do narrador javista: "Farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei" e com os homens todas as outras criaturas por Deus criadas. Deus, porém desiste de exterminar todo gênero humano e toda criação. Ele repropõe a aliança e salva o ser humano, simbolizado na família de Noé, e esta família leva consigo os animais da terra, na arca, que é símbolo mesmo de toda criaturalidade salva e liberta do pecado.


O Sl 104 gradativamente ressalta as maravilhas criadas por Deus, terra, águas, montanhas, vales. No v. 10, o narrador afirma que Deus faz brotar as fontes d'água pelos vales, elas correm pelo meio das montanhas, estas águas dão a beber as feras do campo, os asnos também matam sua sede. Entre as montanhas as aves se abrigam em suas florestas. Das altas moradas de Deus, as montanhas, regam os montes e a terra se sacia com o fruto de suas obras. Deus age bondosamente para com toda criatura. Nada passa despercebido aos olhos sensíveis do Senhor Deus. Ele plasma seu Espírito sobre todas as coisas. Ele dá as plantas úteis aos seres humanos, para que da terra os mesmos tirem o pão e o vinho, que alegram os corações, para que eles façam o rosto brilhar com óleo e o pão fortaleça seus corações.


O salmista ainda recorda das árvores, dos cedros do Líbano que Deus mesmo plantou. O salmo resgata a imagem do Deus Criador universal, não apenas das coisas presentes em Israel, mas do universo. Ele é dono do tempo, pois fez a lua para marcar o mesmo. Ele conhece o sol e seu ocaso (v. 19). Deus marca o tempo, o dia e a noite, possibilitando que nesta os animais selvagens se sintam livres, na noite rugem os leãozinho em busca de suas presas (v. 21). De dia eles se entocam, sai neste momento o homem para faina e seu dia de trabalho. Tudo parece organizado conforme a sensatez de Deus ou conforme a naturalidade dos seres, de seus hábitos. No v. 24, o salmista afirma: "Quão numerosas são tuas obras, Senhor, e todas fizeste com sabedoria". Tudo está perfeitamente harmonizado conforme a bondade de Deus.


Mas hoje a criação de Deus não se encontra assim em harmonia. Vemos por todo canto a criação sendo destruída, seja a natureza, sejam os animais e também o ser humano. O meio ambiente está sujeito à ganância e ao descaso. Tudo está desintegrado, não há mais harmonia. Não nos vemos conjugados ao universo, mas detentores dele. O ser humano parece não estar mais para dominar, no sentido de cuidar, mas dominar para explorar e destruir, retirar tudo o que é possível. Nossa casa comum está sendo terrivelmente ameaçada. Há um verdadeiro descompasso no ritmo da criação. A exploração da natureza e do ser humano desintegram a dignidade de ambas as realidades. O Espírito do Criador parece não ter mais lugar na ópera orquestrada por Ele. Seu Espírito parece exilado, sido retirado às forças, quando a dignidade deixa de existir, seu Espírito é expurgado. A natureza e o ser humano sofrem em dores de parto. É preciso, contudo, romper à nova vida, que conta conosco para existir, no cuidado com a casa comum, no cuidado com nosso semelhante, a imagem de Deus.


Faz-se absolutamente imprescindível dizermos com o salmista (Sl 104, 29b-30): "retiras suas respiração e eles expiram, voltando ao pó. Envias teu sopro e eles são criados, e assim renovas a face da terra", na confiança de que o Espírito do Criador está no meio de nós, de todos e de tudo. Somos todos hóspedes de Ruah (do hálito da vida) e toda criação geme em dores de parto para a nova vida do advento, de cuidado, de responsabilidade, de comunhão e harmonia. Enfim, esta comunhão nos garante que somos parte integrante da natureza e que sem ela todos nós perecemos. Assim, precisamos dela, precisamos cuidar dela para que ela continue sendo nossa casa comum.

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