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Páscoa ou quando Cristo adentra o verdadeiro Templo

por padre Junior Vasconcelos Amaral,

pároco, doutor em Teologia Bíblica e professor de Sagrada Escritura na PUC Minas

 

             A Pessach, que tradicionalmente se traduz por Páscoa ou passagem, celebrada nestes últimos dias, tanto por judeus quanto por cristãos, é, sem dúvida, um acontecimento imprescindível para se compreender a história de Moisés, com o Povo de Deus, e a história de Jesus, com seu povo cristão. Moisés e Jesus são protagonistas de eventos parecidos teologicamente, vividos e celebrados em tempos e espaço diferentes. Contudo, na essência, a Páscoa de Jesus é o adentrar de Jesus, o Filho de Deus, à vida definitiva, não mais tangível pelo ocaso, pelas fatalidades da temporalidade e da finitude. É, assim dizendo, vida infinita. Recorda-se na Páscoa judaica que há mais de 3500 anos Moisés partiu em direção à Terra da promessa, visando à libertação do seu povo cativo no Egito, por cerca de 430 anos. Após a narrativa das dez pragas sobre o Egito, relatadas no livro hebraico – Shemot – Êxodo (7,14-11,10), encontramos a narrativa da Páscoa judaica em Ex 12,1-13,22. No que se diz respeito a Jesus, que viveu há dois milênios, pode-se encontrar na narrativa sinóptica (cf. Mt 26, 17-35; Mc 14, 12-31; Lc 22,3-38), e no Evangelho segundo João (13,1-15), diversas indicações sobre o evento da Páscoa, por ele celebrada, em sua Paixão e Morte essencialmente constituída, como vida nova após a morte de cruz.

A palavra Pessach, de etimologia desconhecida, pode significar passagem, saltar, omitir ou proteger*. Não há na gramática hebraica uma definição concreta e exata para esta expressão, que é tanto utilizada no Oriente por judeus quanto no Ocidente, em sua maioria cristã. Sabe-se, contudo, que esta palavra compreende teologicamente uma profunda realidade vivida por Moisés, o líder carismático do Povo da Antiga Aliança e por Jesus de Nazaré, o Filho de Deus e seus discípulos e discípulas no contexto do Novo Testamento.

Segundo o Dicionário Bíblico de J. Mackenzie, o termo Páscoa está relacionado à festa dos pães Ázimos (Chag haMatzot). “O rito consiste de um banquete em que um cordeiro de um ano é comido. O cordeiro devia ser assado inteiro, e aquilo que não era comido no banquete devia ser queimado antes do dia seguinte. Os comensais comiam-no de pé e vestidos para viagem. Borrifava-se sangue nos umbrais das portas para afastar o anjo desturidor, que matou os primogenitos dos egípcios**”. Este relato pode ser observado em Ex 12,3-14. Segundo a nota de roda-pé da Biblia de Jerusalém (BJ), a associação do termo Páscoa com a festa dos Ázimos se dá pela mão do teólogo javista, ou seja, da Escola Javista (J) (12,34 mais 39), que apresenta o velho rito pascal dos pães sem fermento em relação com a saída do Egito. A BJ ainda ressalta a associação entre a décima praga e a saída do Egito, que seria algo ocasional, pois a saída do Egito pôde ter lugar no próprio momento da festa. A tradição sacerdotal relaciona todo o ritual da Páscoa a décima praga e à saída do Egito (Ex 12,11b.14.42).

Mas seriam duas ou uma só festa? A BJ afirma que “se o texto parece dizer que as celebrações da Páscoa e dos Ázimos nasceram com a saída do Egito, na realidade trata-se de duas festas originariamente distintas: os Ázimos seriam uma festa agrícola que só começou a ser celebrada em Canaã, e que não foi unida à Páscoa a não ser depois da reforma religiosa realizada por Josias (para uma melhor compreensão desta reforma consulte o site http://www.airtonjo.com/historia24.htm). A Páscoa, de origem pré-israelita, é uma festa anual de pastores nômades, para o bem dos rebanhos. O início do relato antigo (v.21), que a menciona sem explicação, supõe que ela já era conhecida, e é verdadeiramente a “festa de Javé” que Moisés pediu ao Faraó a permissão para celebrá-la (cf. 5,1). Dessa forma a ligação entre a Páscoa, a décima praga e a saída do Egito seria apenas ocasional” (acréscimo nosso)***.

No entanto, preferimos nos amparar na afirmação tradicional de que a Páscoa, como se relata em vários momentos da literatura do AT, sobremaneira Ex 12, constitui, fundamentalmente, à saída de Israel do Egito, da casa da escravidão (Jz 6,9). Contudo, respeitamos a nota crítica da Bíblia de Jerusalém, que afirmou a associação ocasional entre Páscoa e saída do Egito.

No que se refere a Jesus, ele celebrou a ceia pascal com seus discípulos no contexto da Páscoa judaica, pois ele e seus discípulos eram judeus. Vale lembrar também que, em outros momentos, Jesus está encorporado à fé de Israel, sobretudo no que diz respeito às festas, sobremaneira, para o Evangelho joanino. Por exemplo, nas suas visitas ao Templo, na passagem pela sinagoga de Nazaré, no encontro com a samaritana no poço de Jacó, ao largo do Monte Garizim, lugar de culto a YHWH. Neste sentido, é indispensável afirmar que Jesus participava integralmente da fé religiosa de Israel. A ceia do Lava-pés, particularmente narrada por Jo (13,1-15), não está em discrepância ou desintonizada da ceia judaica – a Hagadá da Pessach. Jesus celebra a última ceia com seus discípulos sem cindir os protocolos da tradição. No entanto, ele, o Mestre e Senhor, acrescenta à sua celebração pascal traços obviamente próprios, de modo especial a sua própria experiência e condição de servo de Deus (Is 42). Pautamos esta afirmação sobre o gesto profético de lavar os pés dos discípulos, um gesto que não era praticado pelos chefes das casas, mas pelos servos – ou os escravos das casas. Assim, Jesus introduz na lição de lava-pés  o sentido do amor diaconal, do amor que serve os irmãos e irmãs.

No sentido da serviçalidade de Jesus, pode-se pensar na associação feita entre este e o cordeiro, de modo especial na afirmativa de João Batista: “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29. 36), possivelmente com uma alusão ao cordeiro pascal.  Jo 19,36 provavelmente atribui a tipologia do cordeiro pascal a Jesus, como faz Paulo em 1Cor 5,7. A atribuição é um tanto vaga, desde que o cordeiro pascal não é claramente um sacrifício no AT. Uma tipologia entre a ceia pascal e a Eucaristia é sugerida apenas em Lc 22,16 nas passagens relativas à eucaristia. Visto que a morte de Jesus ocorreu por ocasião da Páscoa, muitos temas pascais foram introduzidos na liturgia cristã da Semana Santa e do ciclo da Páscoa (cf. MACKENZIE, p. 696).

 Segundo José Antonio Pagola, a última ceia de Jesus não se trataria de uma ceia pascal. Pagola afirma: “É verdade que algumas fontes indicam que Jesus quis celebrar com seus discípulos a ceia da Páscoa ou “seder”, na qual os judeus comemoram a libertação da escravidão egípcia. No entanto, ao descrever o banquete, não se faz uma única alusão à liturgia da Páscoa, nada se diz sobre o cordeiro pascal nem das ervas amargas que se comem nessa noite. Não se recorda ritualmente a saída do Egito, tal como estava prescrito. Por outro lado, é impensável que nessa mesma noite em que todas as famílias estavam celebrando a ceia mais importante do calendário judaico, os sumos sacertdotes e seus ajudantes largassem tudo para ocupar-se com a detenção de Jesus e organizar uma reunião noturna com a finalidae de ir formalizando as acusações mais graves contra ele” (PAGOLA, J. A. Jesus aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 433). Segundo Pagola, parece mais verossímil a informação de outra fonte que situa a ceia de Jesus antes da festa da Páscoa. De fato, esta consideração sobre a ceia de Jesus celebrada em um dia anterior, mas no contexto pascal, parece bastante pertinente, pois na Páscoa os sumo-sacerdotes atuavam como chefes de família. Nesse caso, a preocupação com Jesus seria irrisória e estaria em segundo lugar.

Inversamente à tese de que Jesus não celebrou uma Páscoa, mas que ele havia celebrado uma ceia-refeição de despedida dos discípulos, encontramos outra teoria, defendida por Joachim Jeremias e Joachim Gnilka, que assegura que Jesus celebrou sim a Páscoa. Esta teoria se alicerçou, principalmente, em Lc 22,15, onde se afirma: “Quanto desejei celebrar esta Páscoa convosco antes de morrer!”. De acordo com o Evangelho de João, ele foi crucificado na véspera da Páscoa (18,28) e, portanto, a ceia foi antes da Páscoa. Também Paulo não fala nada a respeito de uma ceia “pascal” (1Cor 11,23-26). Atualmente, muitos biblistas colocam objeções quanto ao carater pascal da última ceia ou a colocam sob interrogação (Léon-Dufour, Roloff, Theobald, entre outros). Embora não tenhamos atingido um consenso por unanimidade sobre o teor pascal da ceia de Jesus, vale lembrar que a inteção dele, enquanto mestre daquela cerimônia, era celebrar a Páscoa. Aqui voltamos a nos amparar em Lc 22,15 “desejei muito comer convosco esta Páscoa”.

Destarte, não podemos negar o caráter solene da ceia celebrada por Jesus e seus discípulos. Os relatos bíblicos dizem que ele celebrou a ceia com os Doze, não descartando obviamente a possibilidade de que outros discípulos e discípulas estivessem lá presentes. O já citado Pagola, afirma que “seria muito estranho que, contra seu costume de compartilhar a mesa com todo tipo de pessoas, inclusive pecadores, Jesus adotasse de repente uma atitude tão seletiva e restrita”. (Pagola, p. 434). Provavelmente havia, naquele contexto pascal, muitas mulheres que vinham da Galiléia em caravana com Jesus, pois inclusive elas estavam, posteriormente, diante da cruz, como testemunhas qualificadas. Segundo o Evangelho de Marcos, tais mulheres seguiam e serviam a Jesus, desde que ele partira da Galiléia (Mc 15,40-41). Sobre a diaconia e seguimento das mulheres podemos voltar a tratar em outro momento com maior densidade teológica.

O que conflui nas realidades pascais vividas e celebradas tanto por Moisés quanto por Jesus é, sem dúvida, o desejo de libertação. Para o primeiro, o líder Moisés, o desejo de libertação consistia em ver seu povo livre do poder egípicio e das mãos do Faraó. A libertação constitui condição arquetípica da criaturalidade. Pois, Deus cria a partir de sua liberdade e para a liberdade. Não há nada que force Deus a criar. Ele cria tudo o que existe como dom. Portanto, a liberdade é o fim último do ser criado por Deus, ou seja, sua realidade teleológica. Para o segundo líder, Jesus de Nazaré, a liberdade consiste em estar livre para fazer a vontade do Criador. Para Jesus, a verdadeira liberdade e a libertação do ser humano consistiam em fazer a vontade de Deus e não em executar os caprichos do judaísmo tendenciosamente legalista de sua época. Certamente, para os cristãos de hoje, o paradígma da Liberdade de Cristo (Gl 5) vale sobremaneira para a prática das normas que estejam balisadas pela da vontade de Deus. Nem sempre percebemos que executar a vontade dos homens, mesmo que estes sejam revestidos de títulos de hierárquicos, não significa fazer a vontade de Deus. Cristo nos chama à liberdade (Gl 5,13) para a qual ele mesmo foi libertado, à liberdade de Ressuscitado, à liberdade daquele que se coloca inteiramente confiante nas mãos de Deus. Cristo é libertado pela caridade do Pai e é a esta mesma caridade que somos chamados a viver.

A liberdade de Cristo é vislumbrada, em sentido tipológico****, na relação Moisés-Deus. Moisés é o homem que faz a vontade do Senhor.  Para a tradição bíblica ele é considerado o mediador da Lei (Dt 11), aquele que cataliza a promessa e a lei, executando esta e convidando o povo a acreditar naquela, levando ambas à plena realização (cf. Ex 19,3-8; Dt 34,4). Embora Moisés não tenha realizado a passagem para a Terra Prometida (Dt 34,4b), ele acreditou na promessa, viabilizando aos seus legatários a realização do feito: passarpara a Terra de Canaã. Em contrapartida, Jesus realiza por excelência a entrada triunfal na verdadeira “Terra da Promessa”, no paraíso destinado ao ser adâmico criado por Deus. Jesus adentra o Paraíso (Lc 23,43), o Reinado de Deus, à realidade plena, a qual todo gênero humano é destinado a assumir.

Por fim, afirmamos pela força da fé que Jesus Cristo, em sua Pessach, toma posse da Terra definitiva, da realidade celeste e nessa assume a destra do trono divino, no Templo de Deus (cf. Sl 110,5; Mc 16,19). Jesus é o novo Moisés que agora adentra as portas da Terra Prometida, do lugar sacrossanto do Paraíso por nós esperado, do Templo celestial. A Páscoa de Jesus consiste ainda em sua vida assumida pelo Pai. Por isso ele, o Filho, é capaz de nos redimir, pois foi acolhido por Deus. Destarte, o “que não foi assumido não foi redimido” diz São Gregório de Nissa, em 394 d. C. Portanto, acreditamos que nossa vida está escondida com Cristo (Cl 3,3), pois ele, primícia dos que morreram (1Cor 15,20) e primogênito entre os ressuscitados, é aquele que inaugura em definitividade a verdadeira vida em Deus, no Templo sacrossanto – lugar querido, e deseja por todos os que tem fé e esperam pela verdadeira e peremptória passagem.

 

*Cf. BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2010. Nota de rodapé do Ex 12,11.

**Cf. MACKENZIE, J. L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 696.

***Bíblia de Jerusalém, nota explicativa sobre o termo Páscoa. Op. Cit.

****Moisés é imagem prévia de Cristo. Se Cristo é thipós figura, Moisés é considerado antítipo, figura antecipada do que virá, ou seja, de Cristo.

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