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I Domingo da Quaresma: das Cinzas ao deserto com Jesus

por padre Junior Vasconcelos Amaral,

pároco, doutor em Teologia e professor de Sagrada Escritura na PUC Minas.


 

O primeiro domingo da Quaresma é marcado por dois sentidos litúrgicos: anamnético (memorativa) e ao mesmo tempo exortativo (chamado intenso), convidando-nos à conversão, ao compromisso de não nos deixarmos cair (ceder) em tentações.

A primeira leitura, retirada de Dt 26,4-10, nos recorda o “Código da Aliança” ou “Livro da Lei”, descoberto no Templo em Jerusalém no 18º ano do Reinado de Josias, um monarca reformador, em 622 a. C. (ver também 2Rs22). Nesta teologia conhecida como Deuteronomista, de teólogos do Norte de Israel, exilados no sul, na capital Jerusalém, o autor propõe o dízimo dos frutos da terra, uma experiência iniciada pelo povo Cananeu, que retirava um décimo dos primeiros frutos da terra, em suas colheitas, e ofereciam a Baal, o deus da Terra, que era cultuado naquele tempo. Neste contexto deuteronomista, os frutos são ofertados agora ao Senhor-Adonai, também conhecido como IHWH, traduzido muito no Brasil por “Javeh”. O povo recorda nesta narrativa sua origem “meu pai era um arameu errante”, um pobre, que veio do Egito. Lá eles viviam como estrangeiros, eram explorados e sofriam demasiadamente. Ao invocarmos ao Senhor-Adonai, ele nos escutou, viu a opressão e se levantou para nos salvar com mão poderosa e braço estendido (cf. Ex 3,8). Ele, o Senhor, realizou prodígios e sinais. Conduziu-nos para uma terra Prometida (Canaã), onde corre leite e mel (Ex 3,8). Por isso, o teólogo que narra esta passagem diz que oferece ao SENHOR as primícias da terra.

Esta leitura do livro do Deuteronômio evidencia um compromisso surgente de uma aliança (em hebraico BeRiT) libertadora de Deus para com seu povo Israel. O dízimo, oferta da terra, é gesto de agradecimento ao Senhor que concede a seu povo o necessário e até o extraordinário: a libertação (Páscoa – Pessach – passagem) da opressão para a liberdade de servi-lo. Este credo da Primeira leitura deste domingo nos recorda as ações intervenientes de Deus na história, eleição dos patriarcas (Abraão, Isaac, Jacó e José), o Êxodo do Egito, o dom da Terra Prometida. Deus é a verdadeira esperança do seu povo.

Atualizando esta passagem do livro do Deuteronômio, percebe-se que nada e ninguém podem substituir a Deus em nossa existência. Somos de Deus e a ele pertencemos. Ele nos liberta do pecado e da morte e, por isso, a Ele devemos amar com todo nosso coração, toda nossa alma, e nossa inteligência (Dt 6,4). No Salmo 90 (91), o narrador revela que o Senhor está conosco no meio da adversidade. Trata-se da memória do Deus que liberta seu povo do Egito, da Babilônia e de toda opressão. Deus ainda caminha com seu povo, leva-o ao descanso seguro. Nas palmas de sua mão, Ele nos conduz e não nos deixa tropeçar em alguma pedra.

Na segunda leitura, Rm 10,8-13 (Carta de São Paulo aos Romanos), o Apóstolo diz que a Palavra de Deus está perto de ti, na tua boca e coração. Não é a auto suficiência que conduz à fé e à Salvação, mas a fé na Palavra de Deus, que nos convida ao amor (ágape). Paulo nos diz que o Senhor ressuscitou dos mortos e esta ação é divina na vida de Jesus, o Filho unigênito de Deus. Todo aquele que crê não se confundirá, seja judeu ou grego-pagão. Para todos, indistintamente, há um Senhor, Jesus Cristo. Esta carta, a carta magna de Paulo, de sua maturidade teológica, escrita por volta dos anos 57-58 d. C, é um convite à reconciliação, à fé em Jesus Cristo, no combate às divergências existentes na comunidade cristã, sobretudo àquelas advindas da auto suficiência, da presunção da carne. Paulo diz em outras palavras que nós não nos salvamos por nossas atitudes, mas pela nossa fé, por ela, somos justificados em Jesus Cristo. Romanos é um convite à justiça divina (dikaiosyne), que concede vida a todos indistintamente. Paulo evidencia o comum a todos, Cristo. Somos justificados pela fé em cristo e esta é a tese original da Carta aos Romanos.

No Evangelho deste domingo, Lc 4,1-13, nos deparamos com Jesus sendo conduzido ao deserto (em grego: eremon – daí a palavra ermo). Biblicamente falando, o deserto é lugar simbólico do encontro e do desencontro. As caravanas se encontravam no deserto, homens lá se perdiam. Os sentidos se misturam no deserto. As alucinações são constantes, mas é o Espírito que fortalecerá Jesus, no embate constante com Satanás. Assim diz Lucas: “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito”. O deserto de Jesus é seu itinerário existencial, repleto de dissabores. Satanás é o inimigo, aquele que tentará Jesus não apenas quarenta dias, como numa cronologia exata, mas durante toda sua existência, a fim de que Jesus desistisse do projeto salvífico proposto pelo Pai. O deserto, aparentemente sem vida, reserva surpresas inauditas. Neste lugar, bendito existencial, Jesus se vê tentado a desistir de suas convicções mais profundas: fazer a vontade do Pai, anunciar a Boa Notícia do Reino, construir um Reinado de amor e justiça. No entanto, Jesus vence o mal. Sua coragem e determinação irrompem as fronteiras da maldade, impostas pelo demônio, o astuto.

Quarenta foram, exatamente, os dias e noites que Jesus foi tentado no deserto? Obviamente, não. Para a numerologia bíblica, quarenta dias corresponde a uma geração, a uma vida toda. Haja visto que a estimativa de vida de um judeu campesino, no tempo de Jesus, beirava os quarenta anos. Quarenta dias e noites correspondem à vida inteira de Jesus, tentado não por uma entidade demoníaca, mas por sua própria humanidade. Ele, homem, em sua integralidade e efetividade, não deixou de viver a ambivalência de ser um humano na sua afetividade. Indubitavelmente o que norteava a vida de Jesus era o desejo de fazer a vontade de seu Pai. Diríamos que a vida de Jesus foi totalmente excêntrica, pois o centro de sua vida não foi seu Ego, sua satisfação pessoal, mas a vontade do Pai entendida como missão confiada a ele, o Filho, de fazer-se tudo em toda a humanidade, de doar-se até o último instante de sua vida terrena. Assim viveu Jesus, curou, acolheu, amou, compadeceu-se, fez-se próximo dos pobres, das crianças, das mulheres, das prostitutas, dos cegos, dos coxos, leprosos e dos publicanos, enfim, de todos aqueles que eram relegados à margem da sociedade judaica.

No Evangelho de Lucas evidenciam-se três tentações objetivas: Lc 4,3, “manda que esta pedra se mude em pão”. Esta primeira tentação é a de facilitar o caminho da cruz, tornando-a menos difícil. Evidentemente Jesus, em jejum, sentia fome, pois era humano como nós. Jesus, porém, responde ao diabo:  “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’”. Jesus sabe, com resistência, que o alimento fundamental à vida de um homem de Deus é a própria palavra que procede da boca de Deus. Jesus é a Palavra de Deus, por isso se tornou pão que alimenta nossa vida, no sacramento da Eucaristia, que é a Palavra feita sinal no meio de nós. A segunda tentação é a do poder e da glória. Assim diz o diabo: “Eu te darei todo este poder e toda a sua glória (...) Se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu” (Lc 4,6-7). Trata-se da sedução (tentação) do poder e de todas as suas possibilidades. O diabo seduz Jesus a fim de que Jesus valha-se por si mesmo e esqueça-se da vontade do Pai, e assim se esquecesse do próprio Pai. Contudo, Jesus responde ao diabo: A Escritura diz: “Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (Lc 4,8). Para Jesus não há possibilidade de adoração senão a adoração de Deus. Deus é o Criador e tudo o que existe é criatura. A idolatria corresponde para a fé cristã, retirar do lugar o Criador e colocar no mesmo lugar a criatura. Só o Criador é digno de adoração. Por fim, na terceira tentação, o diabo diz a Jesus: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo!”. Jesus é levado ao pináculo do Templo pelo diabo a fim de tentar a Deus jogando-se de lá. Para o diabo, os anjos a mando de Deus tomariam o Filho (Lc 4,9-11). Mas para Jesus a resposta é terminante: “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Lc 4,12). Jesus é tentado a tentar o próprio Deus. Este seria o pecado da não-aceitação da vontade de Deus, de seus desígnios para o ser humano. Jesus, porém, aceita fiducialmente (com fé), a vontade do seu Pai, daquele que o enviou. Tentar a Deus é o mesmo que fazer-se Deus, buscando dar resposta até mesmo ao que é mistério.

Assim, as tentações de Jesus no deserto nos ensinam que precisamos vencer toda maldade deste mundo e, ainda, superar nossa concupiscência para o mal, as inclinações mesquinhas. Vencer o diabo não significa duelar com uma entidade externa a nós, mas vencer nossas tendências à maldade, ao egoísmo, à perversão, ao hedonismo e ao consumismo desmesurado. Vencer o mal é atinar para a vida em abundância, para a partilha, para a bondade, para a proximidade com os pobres e marginalizados, os enfermos e desamparados. Vencer o diabo significa, por fim, colocar a Deus como o centro de nossa vida, crer nele e valer-se Dele para viver.

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