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Da conversão necessária à casa do Pai de Misericórdia

por padre Junior Vasconcelos Amaral,

pároco, doutor em Teologia e professor de Sagrada Escritura na PUC Minas.

 

A quaresma se destaca no Ano Litúrgico como tempo mistagógico, como um caminho ao mistério Pascal de Cristo. Partimos das cinzas, passamos pelo deserto, fomos exortados por Jesus à conversão (em grego metanóia) e chegamos hoje, liturgicamente falando, à casa do Pai de Misericórdia, o que teológica e escatologicamente (como realidade última) se nos espera pela fé. Neste quarto domingo quaresmal encontramo-nos com a misericórdia de Deus, o Pai celeste, que nos acolhe com seu abraço afetuoso em nosso retorno de conversão e arrependimento. Da conversão necessária à casa do Pai Misericordioso pode resumir esta semana, com seus desafios vividos e seus frutos de conversão colhidos.

Hoje, somos brindados por um dos mais belos textos da literatura neotestamentária (NT). Trata-se da parábola ou uma espécie de conto, no qual Jesus narra a história de uma família, pai e filhos, que vivem a realidade do perdão. Ela está intitulada nas edições bíblicas como “Filho pródigo” ou “Pai misericordioso”. Tal relato se insere ao material especialmente lucano (Lc, conhecido em alemão como Sonder Lukas). In grosso modo, só podemos encontrá-lo no Terceiro Evangelho, que está indelevelmente marcado pelo traço da misericórdia divina. Isso se evidencia em Lc 6,36: “Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso” (Lc 6,36). Este corresponde a de um imperativo presente “sede”, de uma realidade que se presentifica na vida, nas relações e se emana da intimidade com Deus, da misericórdia por excelência.

Misericórdia, em grego Éléos, pode ser ainda traduzido por compaixão, amor, sentir as dores de alguém, sofrer com ele em sua fragilidade. Em Jo 3,16 Deus declara seu amor para com a humanidade. Já em hebraico Misericórdia é HeSeD (ver Is 55,3) ou RaHaMiM, palavras podem ser compreendidas como o movimento intrauterino da mulher em dores de parto. Em outras palavras, o Deus criador sofre como uma mulher em dores de parto, cheio de misericórdia para com suas criaturas, a humanidade.

Pelo teor inicial da parábola, Lc 15,2, percebe-se que Jesus se compadecia dos pecadores e publicanos e “fazia refeição com eles”. Esta informação quem nos fornece são os fariseus. Estes e os escribas, porém, criticavam (do grego diegoggizo – o mesmo que “murmurar”) Jesus por sua atitude compassiva. A palavra fariseu pode significar no NT “separatistas”, ou ainda “separados”. Jesus era acusado de “acolher ou receber os pecadores e de comer com eles”. Há evidentemente dois movimentos em relação a Jesus na narrativa que Lucas nos apresenta, o primeiro é a dos publicanos e pecadores: de aproximação, familiaridade, intimidade. O segundo movimento é o dos fariseus: de distanciamento, estrangeiridade e falta de empatia. Nestes dois versículos (vv. 2-3) vê-se de quem Jesus está falando e para quem ele está dirigindo esta história.

  Jesus conta-lhes três parábolas, isto é, três ilustrações, encontradas em Lc 15,3-10. A primeira é a do homem que tinha cem ovelhas e perdeu uma, deixando as noventa e nove seguras e, saindo, foi à procura da centésima. O pastor voltou feliz com sua ovelhinha para casa (Lc 15, 4-7). A segunda parábola é a da mulher que perdeu uma de suas dez moedas, ela acendeu a lâmpada, começou a limpar a casa e encontrou a moeda, saiu feliz contar para as amigas que encontrou a moeda (Lc 15, 8-10).  A terceira parábola, bem mais conhecida e proclamada na liturgia deste domingo, é a volta do filho pródigo à casa paterna, dos versículos 11 a 32.

Embora trate-se de uma parábola rica em detalhes, digna de comentário rico e prolixo, procurarei valorizar os matizes principais, ou seja, como numa pintura, buscarei perceber as pinceladas mais fortes, os riscos principais, aquilo que está nítido, ou seja, os principais traços da mão do artista Lucas, deixando de lado os pormenores, mesmo sabendo que estes são também muito importantes.

Contudo, gostaria de salientar que esta cena do Pai misericordioso e do filho jovem, que esbanjou seus bens, está belamente retratada na obra de Rembrant, intitulada “O retorno do Filho pródigo”. Trata-se de uma pintura de 1669, do período Barroco Europeu, muito difundida e conhecida. Tal obra detalha a figura de um pai, sentado numa cadeira, ladeado por seu filho mais velho, e os empregados, e tal curioso, que busca interpretar a cena, e, junto do pai, aos pés do mesmo, um rapaz, maltrapilho, com as sandálias surradas, prostrado ao colo do pai, com a cabeça bem unida ao seu colo e abdômen, as mãos do pai se debruçam sobre as costas do filho, uma mão mais grossa, outra mais fina, atraindo para si aquele que se tinha perdido e foi recuperado, aquele que tinha morrido e ressuscitou.

A narrativa lucana possibilita-nos adentrar o imaginário cenográfico do pai que mesmo vivo reparte seus bens com seus filhos, a pedido do filho mais jovem, que inesperadamente lhe pediu parte de sua herança (vv. 11-12). Esta atitude parece incerta, porém, para o narrador bíblico tudo é possível. Contudo, para a cultura semita algo deste tipo não deveria acontecer, tendo em vista que o filho mais velho, o primogênito, é detentor de mais da metade dos bens do pai e os filhos os receberão apenas após a morte do pai. Todavia, para que a narrativa se suceda é preciso que este pai, que é misericordioso em plenitude, possa dispor de seus bens para o filho caçula.

O filho caçula juntou seus pertences, viajando para um lugar distante e lá desenfreadamente perdeu seus bens, numa vida incerta. Esta cena, rápida em sua descrição, mostra apenas que a insensatez sobrepujou a inteligência, isto é, o pecado destruiu a graça, ou melhor, dizendo, “quando a cabeça não pensa o corpo padece” (v. 13).

Para piorar a situação do jovem, a região em que ele habitava passou por uma estiagem e ele começou a passar necessidade, isto é, escassez, em grego, histéreo (v. 14).

O jovem foi pedir emprego a um homem que o recomendou a guardar seus porcos. Trata-se de algo que aviltava os judeus, pois, o porco sempre foi considerado um animal impuro, pois não era ruminante e tem as patas fendidas, segundo as prescrições rituais do Levítico (Lv 11). Em outras palavras, trata-se de uma realidade conflitante para os judeus piedosos (fariseus e escribas), que escutavam Jesus nesta terceira parábola (v. 15).

O rapaz desceu ao fundo do poço. Nem a comida dos porcos ele podia comer, pois não lhe davam (v. 16). Em meio a todas as discrepâncias e insatisfações, ele refletiu que aquela vida não era a que gostaria de viver, pois na casa de seu pai os empregados comiam pão com fartura, e, ele lá no estrangeiro, passando fome (v. 17). Pode-se dizer que o motivo primeiro que causou seu retorno para a casa paterna foi fome. Equivale a dizer que sua mudança, sua conversão se dá em um nível muito ínfimo, aquele ligado não às crises existenciais, de consciência ou arrependimento do coração, mas por causa periférica. Mas, Deus em seu plano de amor pode utilizar de algo fútil e desnecessário para nos fazer ver o necessário e o indispensável.

“Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti” (v. 18). Tais palavras são o ensaio daquilo que o jovem diria para seu pai. “Já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados” (v.19). Trata-se de uma virada de consciência. O caçula não tinha consciência de sua importância dentro da casa do pai. Ele agora prefere ser tratado como empregado, a fim de ter as mesmas coisas que os subalternos do pai misericordioso. Pois ele sabe que se permanecesse no estrangeiro, seu fim seria inevitavelmente a morte.

Com os versículos 20 e 21, chega-se ao momento considerado a dobradiça da narrativa, o momento de divergência da realidade passada para a nova realidade, ou seja, do pecado para o arrependimento, do sofrimento da perda para a alegria do encontro. A dobradiça pode, narrativamente dizendo, ser considerada a ação transformadora da intriga [1].

E, como dizem os sábios, retornar é recomeçar. Neste momento, o jovem recomeça sua verdadeira vida, dá-se a metanóia, a mudança de pensamento, a guinada de conversão, a mudança radical. “Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos (v. 20) O filho, então, lhe disse: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’” (v. 21). O v. 20 apresenta o verbo no tempo aoristo “teve compaixão”, trata-se de uma atitude que vem desde o início da cena, é com compaixão que o pai concede seus bens ao filho, é com a mesma compaixão que ele deixa seu filho livre para sair, e, com a mesma compaixão ele acolhe (novamente) seu filho em seus braços. O pai correu, trata-se de uma ação inusitada para um velho senhor. Abraçar é ter para si, mas abrir mão, não querendo jamais reter. Cobrir de beijos é comunicar a verdadeira vida, como no beijo do criador à sua criatura, insuflando o Espírito da vida (Gn 2,7 – Ruah IHWH), o Beijo é ainda comunicação de bondade, de afeto, de amor, e, neste caso, da mais pura misericórdia do pai.

Com toda clareza, a partir do versículo 22, todo cenário e cena se transformam. Uma série de transformações ocorrem até o v. 24 (túnica, anel, novilho e banquete). O contexto é outro, da perda ao encontro, da tristeza à alegria, da espera à chegada. Já no v. 25 a nuvem espessa do ciúme toma conta do primogênito. Ele se encoleriza não quer entrar na casa, onde a festa é dada para o caçula, que havia retornado v. 27. Ele diz ao pai que há tanto tempo está com ele e nunca teve direito de fazer uma festa daquela para seus amigos. O primogênito transfere para o pai a culpa de sua repressão, de seu legalismo (v. 29). Esta atitude demonstra também que o filho primogênito não se considerava plenamente associado a pai. Ele não considerava que o que era do pai era também seu. Aqui, o mais importante seria o sentido de sua pertença, que não parecia ter consistência. Sua atitude de raiva extrapola, acusando seu irmão de esbanjar os bens do pai, a herança, com as prostitutas. Em nenhum momento a parábola afirma que ele havia esbanjado seu dinheiro com elas, somente que havia vivido de maneira desordenada, isso pressupõe uma vida desenfreada, sem sentido, sem disciplina e atenção, mas não equivale dizer que ele tenha gasto tudo com as meretrizes.

O pai, no desenlace da narrativa, evidenciando sua misericórdia e compaixão, diz ao filho mais velho: “Filho, tu estás sempre comigo, tudo que é meu é também teu”, isso equivale a dizer que todo o amor e toda a atenção são sempre eternos para com ele. Contudo o pai ainda afirma: “Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado”. A compaixão do pai vai além da disciplina e seriedade do filho primogênito e ajuizado, mas não ciente de sua pertença e de seu amor para com o pai. O amor do pai extrapola os limites da sensatez, vai além das margens da normalidade, extravasa até os rincões, onde o filho caçula estava, e no seu retorno se dá a disparada dos passos, o abraço e os beijos carinhosos. O amor do Pai é sempre eterno pelo filho mais velho, mas é preciso sentir-se amado, é preciso deixar-se amar para também saber amar. 

Por fim, a parábola em questão pode nos levar a pensar ainda uma tríade de personagens muito importantes: O pai é Deus, o primogênito é Israel, e o caçula é Jesus. O Pai é sempre o mesmo, tanto para o primeiro como para o segundo. O jovem pede sua herança, decide-se residir num mundo incoerente, pleno de divergências, pecados e misérias. Ele, o jovem, em sua prodigalidade dispensa seus bens, o bens do Pai, com todos os miseráveis da Terra. O Filho mais velho, contudo, é ciumento, parece querer deter todos os bens do pai, deter também a preferência. No entanto, é o filho mais jovem que demonstra sua prodigalidade, bem como o Pai, pródigo em amar, pródigo em abraçar e atrair para si todo aquele que “se perdeu”. Na verdade, nos pormenores desta narrativa, o Pai é que é o pródigo, aquele que esbanja com fartura, que se dá sem limites em seu amor, ensinando seu filho Jesus a doar – esbanjar sua vida, de forma plena, na cruz. Esta é apenas uma possível interpretação para este conto lucano, tratado como parábola. Não fechamos aqui nenhuma interpretação e nem queremos dizer que a nossa seja a melhor.

Quiçá, também possamos retornar para casa do Pai, que estará de braços abertos a nos esperar, cobrindo nossa vida com as vestes da justiça, concedendo-nos o anel de bondade em nossa mão, nos servirá com o banquete eterno e farto, e nos abraçará com toda ternura, não perguntando por onde andamos, nem por que decidimos sair, mas apenas olhará nosso rosto e nos cobrirá de beijos, fazendo-nos sentir seu amor, sua ternura agápica, seu amor que não conhece limites.

       [1] A INTRIGA É O PRÓPRIO DRAMA NARRATIVO, QUE SE COMPÕE DE INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO, AÇÃO TRANSFORMADORA, CLÍMAX NARRATIVO E DESFECHO.

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