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Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo.

PASCOM Guadalupe

por padre Junior Vasconcelos Amaral,

pároco, doutor em Teologia Bíblica e professor de Sagrada Escritura na PUC Minas

 

Solenidade de São Pedro e São Paulo


Mt 16, 13 Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: "Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?" 14Eles responderam: "Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; Outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas". 15 Então Jesus lhes perguntou: "E vós, quem dizeis que eu sou?" 16 Simão Pedro respondeu: "Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo". 17 Respondendo, Jesus lhe disse: "Feliz es tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu. 18 Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la. 19 Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus".

Estamos diante de um texto conhecido, instigante e sobremaneira decisivo para a comunidade e o Evangelho de Mateus. Tal narrativa pode ser considerada a dobradiça do Primeiro Evangelho (como é considerado na ordem canônica, como o encontramos na lista do NT). Comparado a tal dobradiça, este texto, separa duas realidades: a primeira, a qual se trata da missão de Jesus na Galileia e Judéia e a segunda, na qual se dá início à viagem de Jesus a Jerusalém. Esta segunda parte tem seu ápice narrativo na morte e ressurreição de Jesus, o livro da Paixão. Evidencia-se, portanto, no Evangelho mateano (Mt) um caminho no qual Jesus norteia sua história terrena, desembocando na morte de cruz e na resposta de Deus, sua Ressurreição.

A primeira parte da narrativa de Mateus, que vai do capítulo 3 a 14, Jesus se apresenta, mas seus compatriotas se recusam a crer nele. Até concordam que ele tenha autoridade (exousia, em grego), mas como um profeta não é bem aceito em sua casa, eles preferem ser indiferentes a Jesus. Ele, porém, se apresenta poderoso em obras e palavras, cura, expulsa demônios, e anuncia as bem-aventuranças do Reino dos Céus. No fim desta secção do Evangelho encontramos os ensinamentos parabólicos (cap. 13, conhecido também como parábolas do Reino).

A segunda seção narrativa de Mateus, que se inicia no capítulo 14 e vai até o capítulo 28, moldura na qual o texto deste domingo se encontra, contempla Jesus percorrendo o caminho que o leva pela cruz à gloria da Ressurreição. Dois movimentos evidenciam esta longa secção; a primeira de base geográfica (14,1-16,20) e segunda de base doutrinal-teológica (16,21-20,34). A base geográfica diz que Jesus vai para região de Cesaréia de Filipe. A base doutrinal é que lá ele vai anunciar sua paixão, morte e ressurreição.

O texto proposto para esta liturgia dominical, na Festa de São Pedro e São Paulo, compreende um pequeno relato (a confissão de Pedro), uma secção unitária, que vai até o versículo 28. As secções podem ser divididas da seguinte maneira: Mt 16, 13-20: Pedro reconhece em Jesus o Filho de Deus; Mt 16, 21-23: anúncio da Paixão e Ressurreição de Jesus e a tentação de Pedro; Mt 16,24-28: As condições para o seguimento de Jesus: renúncia de si mesmo e tomada da cruz.

Obviamente na base geográfica do Evangelho, a qual se trata das viagens de Jesus, suas idas e vindas, anuncia-se também uma doutrina nova, um conhecimento novo. Tomemos a narrativa proposta para esta liturgia e vejamos as minúcias de Mateus nas entrelinhas do seu tecido narrativo.

v. 13 “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?’” Jesus se dirige à região de Cesaréia de Filipe. Tratava-se de uma cidade construída junto às nascentes do Jordão, nos anos 2 ou 3 a. e. C. por Herodes Filipe, em honra de Augusto. Tal cidade é conhecida hoje como Banias, um importante lugar por causa das nascentes do rio que corta e divide ainda hoje os limites de Israel e Palestina.

A questão geográfica da tradição da profissão do apóstolo Pedro é diversa nos Evangelhos Sinópticos. Para Marcos e Mateus, trata-se de Cesaréia de Filipe. Para Lucas o fato da profissão se dá em Cafarnaum ou nas imediações. João, diferente dos Sinópticos, insere as palavras de Pedro logo após o discurso sobre o pão da vida, feito na sinagoga de Cafarnaum. Esta cidade localizada ao litoral do mar da Galileia era onde Pedro e os discípulos moravam.

A questão de fundo está na expressão “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” Trata-se do feedback (retorno) que Jesus deseja daqueles que ouvem dizer sobre ele, daqueles que estão fora do círculo dos discípulos, ou seja, da opinião pública.

v. 14 “Eles responderam: ‘Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; Outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas’”. As respostas são as mais diversas sobre o Filho do Homem. Alguns pensavam que fosse o Batista, outros que era Elias ou Jeremias. Tais opiniões em nada relacionam à verdadeira realidade. Evidente que estas respostas coincidem ainda hoje sobre Jesus, pois muitos homens e mulheres o consideram apenas um profeta ou guru espiritual ou ainda um sábio e iluminado do povo. Longe desses está a verdadeira identidade de Jesus, homem-Deus, Deus-humano.

v. 15 “Então Jesus lhes perguntou: ‘E vós, quem dizeis que eu sou?’” Paralelamente à primeira pergunta, esta outra desce a nível pessoal dos discípulos. Trata-se agora de eles identificarem quem é Jesus de Nazaré. Não se parece uma tarefa fácil. Evidentemente, os discípulos também tinham visões diferentes sobre aquele que eles seguiam. Alguns o consideravam apenas um Messias político, da ordem davídico-salomônica, outros o consideravam um zelote reformador, outros, que já estavam inconformados com seu modo de ser, o consideravam mais um curandeiro e sábio que Messias político. Havia, portanto, divergências entre os discípulos sobre a verdadeira identidade de Jesus. A pergunta que não se calava em seus corações era: “Quem realmente era esse homem?”

v. 16 “Simão Pedro respondeu: ‘Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo’” É Simão, filho de Jonas, o primeiro dos discípulos a ser chamado por Jesus, certamente o mais velho entre eles, que, em nome dos demais discípulos responde para Jesus: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Há, com toda certeza, dois níveis de compreensão nesta resposta de Pedro. Primeiro, o título Messias é funcional. Trata-se daquilo que Jesus veio cumprir. Ele é Messias, o Ungido do Pai. Ser Messias, para a tradição messiânica de Israel, consistia em assumir um reinado messiânico, no qual não haveria mais injustiça e a paz (shalom) reinaria em todos os corações humanos. Segundo, o título Filho do Deus vivo, representa a natureza de Jesus, ele é Filho de Deus vivo, do Deus de Israel. Trata-se da ontologia de Jesus, do seu ser, da sua natureza divina. Ele é filho de Deus, isto é, Deus de Deus.

Destarte, Pedro compreendende o além da missão de Jesus como Messias, compreende, pois, a identidade própria e natural de Jesus, o Filho de Deus, “Bar Elohim”, em hebraico. Vale lembrar que nos lábios de Pedro se insera a fé da Igreja primitiva, iluminada pela luz da Ressurreição de Jesus, inspirada por Pentecostes (o envio do Espírito Santo). Evidente que tal profissão é pós-pascal, na perspectiva da narrativa bíblica, isto significa após a Páscoa, como advento importante para interpretar tudo o que realizou o Jesus terreno. Mas também é pré-pascal, isto é, antes do evento da Páscoa de Jesus em perspectiva da história. Jesus pergunta aos seus discípulos quem ele era e esta questão se vincula à sua identidade de mestre e a compreensão que os discípulos faziam de Jesus. É como o professor que pergunta no meio da aula “Vocês estão compreendendo o que eu digo?” Nesta pergunta o professor saberá se tem didática suficiente e se esta interfere no aprendizado de seus alunos.

v. 17 “Respondendo, Jesus lhe disse: ‘Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu”. Ao receber tal resposta da boca de Pedro, Jesus se admira e o considera “feliz” – em grego Makários – “bem aventurado”, tal como no capítulo 5, das bem-aventuranças. Pedro, filho de Jonas, recebe de Deus a revelação de que Jesus é Messias e Filho do Deus vivo. Foi Deus Pai quem comunicou a Pedro a identidade de Jesus, pela fé, não como algo miraculoso e estranho, mas na experiência com Jesus, no discipulado, no caminho, no seguimento. Pedro é capaz de identificar a verdadeira realidade de Jesus, seguindo-o. Contudo, conhecer não é sinônimo de fidelidade irrestrita, pois sabemos que Pedro o nega três vezes. Pedro é bem-aventurado não por sua inteligência ao explicitar a filiação divina de Jesus, mas por se deixar iluminar pela graça divina da vida do Filho do Deus vivo. É o próprio Jesus quem se revela, Pedro é apenas capaz de Deus, capax Dei, capaz de se relacionar com Deus e vê-lo no Filho, próprio de Deus encarnado (Jo 1,14).

v. 18 “Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la”. Segue um duplo dito que se prospecta sobre o futuro. Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei a minha Igreja. Pedro, em grego Kefa (daí o lexema kefalé – “cabeça”), em aramaico Cefa. Antes de tudo Simão é chamado de Pedro, tradução grega da palavra aramaica Kefa, que quer dizer “rocha”. O discípulo é apresentado e constituído como pedra sobre a qual a comunidade messiânica edificará sua ekklesia, isto é, sua igreja, os chamados.

Por um lado podemos identificar Pedro como pedra sobre a qual Jesus edifica sua Igreja. Por outro, podemos identificar em Pedro a pedra angular, isto é, Jesus, a verdadeira rocha sobre a qual se edifica a Igreja. Numa terceira via, ainda, podemos ler na perspectiva de que Pedro edifica sua Igreja, que é igreja de Jesus, sobre a pedra angular que é o próprio Cristo, pedra que os construtores rejeitaram. Estas leituras em nada forçam o texto bíblico, mas dão ao mesmo a oportunidade de se redizer em outras perspectivas que não aquelas fundamentadas apenas pela palavra escrita, mas reditas na perspectiva do Espírito, numa possível pragmalinguística que não se preocupa unicamente com o texto escrito, mas como o leitor pode interpretá-lo. Pois, teologicamente falando Cristo é a pedra que os construtores rejeitaram e que se tornou a pedra angular (Sl 117), sobre a qual a Igreja de Pedro está edificada.

Em perspectiva lexical, Jesus diz que Pedro é pedra e sobre esta pedra, que supostamente é Pedro, ele edificará sua Igreja. Em perspectiva semântica, o contexto é de edificação, Pedro-Kefa, rocha sobre a qual se constrói a Igreja. Pode-se evidenciar que Pedro só se torna “rocha” porque percebe que Jesus é o Messias e o Filho de Deus. Evidencia-se que Pedro reconhece a verdadeira Pedra, que é Jesus e ganha a oportunidade de ser, a partir dele, a pedra relativa sobre a qual o próprio Jesus edificará sua Igreja. Em perspectiva teológica, Jesus é a pedra angular, a rocha principal da construção do Reino de Deus (Sl 117). Será sobre Jesus que Pedro edificará a sua Igreja, a Igreja de Jesus. Estas duas últimas perspectivas esvaziam o triunfalismo petrino. Evidentemente esvaziam também o triunfalismo da figura do papa, que não é a rocha sobre a qual a Igreja está edificada, mas sinal de comunhão e unidade dos fiéis cristãos. Em Francisco, Bispo de Roma, vemos esta significação. Ele apenas quer nos confirmar na fé, garantindo nossa fidelidade a Cristo, longe de se auto-referenciar.

Ao ressignificar a imagem de Pedro estamos ressignificando a figura do papa, que sempre será sinal de unidade em torno de Cristo, aquele que nos precede ao Cristo. Podemos então perceber Pedro como homem do serviço, pois ele edifica a Igreja de Cristo e isso vale para a pessoa do papa hoje. É óbvio que esta perspectiva está também amparada na repreensão (chamada de atenção) que Pedro sofrerá de Jesus, logo no versículo 23, onde Jesus dirá àquele: “Tu és para mim eskandalon”, que da tradução grega significa “pedra de tropeço”. Então, quem deveria ser pedra de edificação pode ser ao mesmo tempo pedra de tropeço?

A Igreja, “ecclesia” em grego, e “qahal” em hebraico, é comunidade dos convocados, dos que foram convidados, vocacionados. Ela é sinal da vida de Cristo no mundo, de sua comunhão com os homens, da tenda (shequinah) no meio da humanidade. As portas do inferno não prevalecerão sobre ela, aludindo à imagem da cidade bem edificada. Significa que a morte e o aniquilamento não poderão derrubá-la, evidenciando seu caráter perpétuo entre os homens. no mundo.

v. 19 “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus". Jesus confia a Pedro as chaves do Reino dos Céus. “Ligar – desligar” é forma rabínica de dizer declarar, com autoridade, proibido ou permitido. Este é o sentido a nível doutrinal. Pedro tem hegemonia na comunidade dos convocados. É quem liga e desliga alguém da comunhão com a Igreja e assim como Cristo. O que desligar na terra será desligado no céu, e o que ligar na terra será ligado também no céu. Evidencia que Pedro antecipa no céu a comunhão dos que estão na terra e desliga do céu aqueles que são desligados na terra.

Deste modo, ao celebrarmos os Apóstolos São Pedro e São Paulo, celebramos a Igreja gloriosa no céu e a peregrina na terra, rezando pelo nosso Papa. Que a Igreja do alto ajude-nos com sua intercessão e nos ensine o a viver o amor e a fidelidade a Cristo e a caridade benfazeja a nossos irmãos e irmãs, que caminham conosco.

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