Da casa do Deus de Misericórdia ao “Ninguém te condenou... Eu também não te condeno” de Jesus
por padre Junior Vasconcelos Amaral,
pároco, doutor em Teologia e professor de Sagrada Escritura na PUC Minas.
Ao experimentar da Misericórdia divina, ninguém permanece o mesmo. No domingo passado, o Domingo do Filho pródigo ou do Pai pródigo em Misericórdia, experimentamos a mais bela expressão de comunhão com Deus, pois adentramos com o filho pródigo à casa do pai. Pode-se dizer com isso que a misericórdia e o amor são expressões da mais fina flor que Deus nos oferece. Ele nos trata com imenso carinho, nos acolhe em sua casa, nos reveste de dignidade, abraçando-nos e beijando-nos, nos alimenta com o banquete, pão nosso de cada dia, nos dá a dignidade da aliança perdida pelo pecado.
Neste 5º Domingo Quaresmal, junto com a mulher adúltera (Jo 8, 1-11), somos acolhidos por Cristo em seu meio, o Filho do Deus de Misericórdia, e dele experimentamos o mais alto teor da compaixão. Ele não nos condena, nós também não devemos condenar nossos irmãos e irmãs.
Enquanto Jesus ensinava no Templo, onde vários sábios e mestres também ensinavam seus discípulos, trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em flagrante adultério. A Lei de Moisés era clara: pena de morte para adúlteros (Lv 20,10), pena de morte por lapidação (apedrejamento) à prometida ou desposada infiel ao homem a quem legitimamente pertence, embora não convivesse com ele (Dt 22,21). Ez 16,38-40 fala sobre lapidação como pena normal das adúlteras. Trata-se de uma lei implacável e do ponto de vista humano terrível.
Naquele tempo, lembra Aíla Pinheiro[1], “o adultério não era considerado somente a relação sexual. Aquela mulher poderia apenas ter se insinuado para um homem, e isso já a identificava como adúltera. Nesse contexto, uma pessoa pode adulterar sozinha (cf. Mt 5,27; Jesus aplica essa leia também para o homem).”
A cena se desenrola publicamente no Templo. Os escribas, fariseus, saduceus (mantenedores do templo) e outros discípulos (os estudantes de Jesus) assistem à cena. Mas são alguns mestres da lei e os fariseus que levam até Jesus uma mulher surpreendida em adultério (v. 3). Eles desejam apresentar ao mestre Jesus um caso legal e prático, provavelmente com a intenção capciosa de testá-lo, como muita artimanha, a fim de desmascarar Jesus (como em Mc 12,13-17, na querela sobre a moeda de César). Pois, se ele não achasse por bem aplicar a Lei de Moisés, seria tido como um blasfemo, por de fato desacatar o poder da Lei. Por outro lado, queriam saber como Jesus solucionaria este problema. Se ele aplicasse a Lei, deixaria de lado a prática da misericórdia de Deus, que perdoa e concede nova possibilidade ao pecador como em Os 2, ou Is, 1,21-26;49,54 ou Ez 16, onde tais profetas apresentam IHWH (o Senhor) que é esposo, perdoando e reconciliando-se com sua mulher infiel, a Samaria ou Judá.
O narrador do evangelho joanino justifica no v. 6 a intenção dos Mestres da Lei e dos fariseus:“Perguntavam isso para experimentar Jesus e para terem motivo de acusá-lo”. Tratar-se-ia de um cenário quase arquitetado. Jesus, porém, nada responde, parecendo ignorá-los. Ele sabe que a vontade de seus interlocutores não era conhecer a vontade de Deus, que perdoa ou executa o pecador, “mas apenas ter algo concreto para incriminá-lo”[2].
O exegeta Luís Alonso Schökel, no comentário da Bíblia do Peregrino, questiona: o que Jesus escreve no chão, enquanto permanece silencioso? “Como o narrador nada diz, os comentaristas encontram amplo campo para conjecturas: algum texto da legislação penal, o nome dos que “se afastam do Senhor” (Jr 17,13), ou simplesmente rabiscos”[3]. Independentemente do que escrevera Jesus no passado, o que ele quer demonstrar é que os impecáveis precisam meditar em seus corações sobre a misericórdia de Deus. Quando eles insistem, Jesus encontra a resposta de forma inusitada, modificando o esquema da questão, envolvendo-os no assunto: “Quem dentre vós não tiver pecado atire a primeira pedra”. Esta questão os faz retroceder confusos (Sl 70,3-4; 129,5). A lei foi feita para o homem e a mulher e Jesus não veio para julgar ou condenar e sim para salvar (Jo 12,45). A salvação desta mulher está no perdão e na mudança considerável de vida (Ez 16,63).
Quem não estiver sem pecado... Absurdo seria dizer que não temos pecado. Há ainda outro adultério pior ou maior que aquele da mulher: a infidelidade dos dirigentes da religião a Deus, denunciado com veemência pelos profetas (Ez 16, Os 2).
Não tendo como levar a cabo a condenação da mulher, cada um foi embora, a começar pelos mais velhos, ou seja, os mais prudentes. Restou apenas Jesus e a mulher (v. 9b). “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” é o que pergunta Jesus à pecadora. Diante da resposta dela: “Ninguém, Senhor” ele afirma que também não a condena. Jesus despede-se da mulher de forma imperativa, ordenando-lhe que não peque mais: “Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais”.
Jesus revela-se misericordioso, tal qual aquele que o enviou do alto. A justiça de Deus, revelada por Jesus, é diferente em tudo da justiça humana, condenatória e fatídica. A justiça de Deus é repleta de perdão, orientando a vida do homem para a mudança radical, do pecado para perdão, do ódio para o amor, do mal para o bem. Esta cena narrada por João, não revela apenas a misericórdia de Deus, mas a fé da mulher que foi perdoada por Jesus, por sua fé ela foi justificada, podendo novamente configurar sua vida com o projeto de Deus, de amor e de misericórdia.
Por fim, ao adentramos à Casa do Pai misericordioso, no 4º domingo da Quaresma, somos revestidos de misericórdia e amor, somos transformados pela ação redentora do Filho Jesus, que nos ensina em sua prodigalidade a doar amor, mais que condenar, a perdoar mais que julgar. O gesto de Jesus acolher a mulher adúltera nos faz, enfim, pensar em nossas atitudes de acolhida ou de fechamento no interno da Igreja e na vivência em sociedade. Estamos muito mais prontos a julgar e condenar que acolher e perdoar. Somos na Igreja os primeiros necessitados de conversão para depois de fato sabermos acolher as pessoas em suas misérias. Precisamos nos converter, nos despojar de nossas pedras de vaidade, com as quais apedrejamos as pessoas e, de fato, sermos capazes de dizer: “Ninguém te condenou... Eu também não te condeno”.
[1] ANDRADE, Aíla Luzia Pinheiro. Uma presença que convida à conversão. In: Roteiros Homilético Revista Vida Pastoral. Mar-abr (2013), ano 54, n. 289. p. 47.
[2] Idem, p. 47.
[3] SCHÖKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. 3. Ed. São Paulo: Paulus. 2011. p. 2575.
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